O CUSTO DE UMA OBRA PARADA
Ginga, no Brasil, há muito tempo é um patrimônio imaterial.
Esse espasmo de alegria, quase instintivo para um brasileiro sob o batuque, tem o poder de projetar mundo afora a balconista da
loja, o gari, em coreografias contagiantes. Um jeitinho brasileiro de
glamourizar a pobreza, mas também de revelar o valor de se fazer muito, com
pouco.
Foi assim que o Brasil entrou no cenário da TV digital,
fazendo muito com pouco. Instituições nacionais de pesquisas, muito sérias e
competentes, desenvolveram o software Ginga, um jeito brasileiro de entrar no
meio da tecnologia japonesa. Bem no meio, um middleware, capaz de dar outra
graça no hábito de assistir TV. Mas isso foi há muito, muito tempo atrás. Sim,
porque quando se fala em "tempo digital" a referência é outra. O
inverso de quando se fala em tempo geológico, onde o surgimento da espécie
humana é um fato que "acabou de acontecer". Essa referência de tempo aqui é fundamental para
compreender a situação que se aproxima.
O Ginga chegou ao público brasileiro junto com a TV digital,
em 2007. Ele trazia para a telinha o potencial de interatividade em 3
diferentes níveis. No nível mais elevado ele precisa da conexão de retorno,
pela Internet. As possibilidades comerciais e institucionais do software eram
imensas naquele tempo distante. Mas as eras digitais foram avançando, os
smartphones foram se popularizando, assim como os tablets. A TV também ficou
smart, muito mais com a cara do outro mundo, aquele onde a Internet trafega
muito mais rápida e universalmente. E assim, para o cidadão comum o Ginga
passou sem nunca ter chegado. Para o governo ele até atendeu necessidades
importantes. Foi a solução política para o momento polêmico da escolha do
padrão de TV digital, e deu consistência a um discurso nacionalista de apoio à
tecnologia brasileira.
Se essa história acabar assim, o Brasil poderá jogar fora
uma oportunidade de ouro para vários setores. Seria exatamente mais uma obra
pública inacabada, que teve um custo, fincou alicerces mas acabou não servindo
em nada ao grande público.
Esse tema está sendo tratado aqui simplesmente porque existe
ainda uma chance de dar o acabamento que essa obra exige. E evitar um custo
pesado também para o ânimo inovador da tecnologia brasileira. A limpeza da
banda de 700MHz para a Internet 4G, objeto do artigo anterior deste blog, vai
remanejar canais de TV e a totalidade da tecnologia de transmissão, a pedido das operadoras de celular. Isso deve
trazer muito dinheiro para o caixa do governo e importantes compensações para
os atendidos por este serviço público, no caso, a população brasileira. Como
boa parte dos lares já migrou para a nova tecnologia de TV, as compensações vão
beneficiar as faixas sociais de baixa renda. São os catorze milhões de famílias
atendidas pelo programa bolsa família. Diga-se, uma audiência admirável! E que
ainda não avançou tanto na escala digital do tempo, não chegou em peso à última
geração de smartphones/TVs, tablets. É exatamente essa audiência que também
demanda intensivamente a maioria dos serviços públicos.
Nessa hora, um "olhar para os que mais precisam"
começa por uma ação mais sincera e eficiente da parte do governo. Ao invés de
decretar mais obrigatoriedades do Ginga, para algumas empresas venderem mais
licenças de implementações, podem ser implantados programas oficiais de
atendimento público via TV. Isso tornaria o Ginga necessário, além de meramente
obrigatório. Por outro lado, geraria soluções eficientes, baratas e
racionalizadoras de recursos. Imagine se, para agendar uma consulta, um cidadão
não precisasse sair de casa, tomar ônibus e pegar uma fila no posto de saúde.
Quantos custos não seriam poupados desde tempo, transporte, funcionários para
atendimento. Se o Governo Federal implantasse esse hábito via TV, com o Ginga, também as prefeituras poderiam otimizar
cobranças de IPTU, taxas, melhorar a comunicação sobre serviços de água,
abertura de matrículas na rede de ensino, notificações das famílias sobre
desempenho escolar dos filhos. Os órgãos de segurança pública poderiam
distribuir alertas, orientações. Essa plataforma toda conversando em Ginga
traria à tona todo o potencial do software brasileiro, gerando investimentos
que poderiam até concorrer com as alternativas empresariais criadas fora do
ambiente da TV. Seria o tempo limite para o governo dar um aproveitamento a
essa brilhante solução de comunicação que pode simplesmente passar calada.
Por enquanto, a Anatel está reticente. Fala-se em distribuição de set-top boxes capazes de
interatividade, mas não se fala no Ginga - nesse início ele precisa ser
obrigatório, para criar o "território brasileiro" no mundo da tecnologia de TV.
Em seguida, a Casa Civil ou outro núcleo interministerial de governo deve ser
acionado para traduzir em Ginga os serviços públicos possíveis nas áreas de
saúde, educação, cultura, dentre outras. Do outro lado, empresas inovadoras
nacionais e institutos de pesquisas já estariam prospectando mais soluções e
novos espaços para a tecnologia brasileira de informática para TV.
Se esse roteiro não for cumprido até o fim o Ginga pode
passar a ser simplesmente mais uma causa nacional. Ou seja, um lamento ilustre
e chauvinista. Daqueles assuntos que aparecem numa mesa de bar depois que já
passaram todos os assados da casa, os pratos fritos e só sobrou um grupo
"cozido" esperando a saideira.
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